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Arquivo mensal: setembro 2020

PSICOPOMPO: uma 1ª olhada…

PSICOPOMPO (Editora CALIGARI – Rio de Janeiro, 2020) de Octavio Aragão e Carlos Hollanda foi uma Graphic Novel pensada da primeira à última página.

A história é fruto da criatividade do romancista Octavio. E, se de início, pretendia-se uma história infanto-juvenil, tudo migrou para a temática adulta das “Graphic’s”. Carlos Hollanda foi ouvinte e padre na hora do confessionário. Afinal, um artista precisa de outro artista para o ato da confissão. Só essa elite (como mais chamá-la?) tem essa dor de só poder contar com outra mente igualmente refinada para poder dizer suas dores e ideias. Uma pena, mas não teria como ser de outra maneira. Hollanda, que já deu ao mercado – e à academia – acabadas formas de seu lápis, pena, capacidade intelectual e criativa toma para si dar vida em quadrinhos à história de Octavio.

Cabe menção a Osmarco Valladão que estava no início da empreitada… mas precisou abandonar pq o momento não era propício para ele. A verdade é essa; o resto é diz-que-me-diz e não é do feitio dos três artistas – que conhecemos bem.

Aqui, nessa “1ª olhada”, continuo com o movimento, muito caro à minha terra e seus filhos, de reler muitas vezes, pensar muito mais do que leu e… soltar as leituras em doses pequenas. Abaixo, uma explanação pequenina, porém ambiciosa, não escondo, sobre o que PSICOPOMPO é. Uma investida maior na obra será dada em outro tempo; porém não diferente desta presente; que ora visa o “detalhe”. Seja na pena de Aragão ou no lápis de Hollanda.

Antes das imagens e das impressões deste jornalista, cabe a colocação que não VI ou LI em qualquer resenha ou propaganda ou sinopse da Graphic Novel até o dia presente (28.09.2020): PSICOPOMPO é mais uma PERGUNTA muito incômoda ao mercado editorial nacional do que qualquer outra coisa! Pergunta essa para a qual não vejo horizonte de resposta.

Tomando a licença (que aqui só pode ser: poética) de não postar e/ou comentar a capa, vamos à primeira imagem:

Páginas 08 e 09.

A narrativa, o roteiro de Aragão é cinematográfico sem espaço para outros substantivos (apesar de “sim” para outros adjetivos): ele constrói uma sequência onde a imagem e o texto têm linguagem que a geração “TV” (1970/1980), a geração “VHS” (1980/1990) e as duas posteriores (geração DVD/Internet) vão se basear na mesma coisa): a linguagem narrativa em arquivo digital – desinteressando a fonte, reconhecerão fortemente!

Na primeira página (página 08), os dizeres são rápidos e Hollanda dá o recado com cortes entre um quadro com texto e um quadro sem texto… onde o poder de tradução do desenhista é visível como no quarto e último quadro desta página: (ali estaria o) “YIN-YANG” – onde Octávio diz “Onde há apenas uma certeza…” – o desconforto do primeiro quadro se segue até o terceiro, onde no último da página o símbolo chinês aparece. Mas o que isso é na intenção do desenhista? A representação de duas forças do universo, contrários e juntos no tempo onde o YIN representa o fraco, o esconder, o diminuir, o depositar, o tranquilo, o calmo, a mulher. O YANG é a força, a coisa mostrada, a soma, o colher, a agitação, a ação, o homem.

Hollanda dá um início que coloca dúvida no leitor. Mas fecha a página com a essência de PSICOPOMPO: a afirmação das duas forças, onde o símbolo só pode apontar para uma sequência de leitura que provoca a dúvida e a necessidade de se dar com a ordem binária das coisas. O trabalho do desenhista diz que o texto do escritor vai tratar do Bem e do Mal. Porém o roteirista recusa a coisa comum… e dificulta o caminho pois, definir as duas forças contrárias – e que se completam – é tão difícil como saber usá-las.

Página 11

Aqui, o jogo de futebol antes mostrado, segue com um atacante – que chuta a bola com vigor – loiro. Que se note: o continente Americano como uma só coisa é mestiço. Eurodescendentes, nativos, negros e amarelos. Canadá e EUA apontam para uma hegemonia anglo-francesa. Porém o resto trabalha sob a regra que apontamos. A velocidade do cinema aponta para um nativo “puro” no gol. Mas o desenhista é ardiloso: o ataque vem não do europeu, o que seria uma postura fraca e cansada, mas sim da imagem de um garoto que aponta para apenas uma etnia a atacar a todos nós!

Página 13

A bola, que na página 11 é algo que no desenho pretende-se realista, chega ao “gol” – defendido por um mestiço, logo, por todos nós, americanos – como um sol imbuído de energia cinética, luminosa, fonte de poder! Eis o que temos de enfrentar todo dia, eis o “Mal”, a difícil tarefa de se construir no mundo e de se estar no mundo.

A bola chutada é a bola comum. A bola a se defender tem o poder de uma estrela e impedir o gol é se postar na difícil posição do eu ESTAR no mundo e o eu ATUAR no mundo. A dialética “YIN-YANG” volta (ela tinha ido embora?) e o Bem e o Mal também retornam, dando o tônus da revista em quadrinhos que se inicia. Todo esse conteúdo em tão poucas páginas é feito em muitos cortes. Imprime velocidade à leitura e põe à prova a capacidade de absorção da história. E o andar na Graphic Novel não fica mais fácil.



Página 14

E a vitória é nossa! Ao capturar a estrela abundante de poder, o mestiço americano faz do problema do existir apenas o que ele é. A ação do herói comum, do “pedestre dia-a-dia”, do americano comum ao defender o gol, torna a bola-sol em bola-apenas. O problema humano sem disfarces, sem mistificações, o existir sem mistério, a ação como solução da equação que – suspeito – não existe: o existir humano.

Aqui, Hollanda vence novamente! A bola capturada é de novo desenhada apenas como… bola. Uma vez lançado à vida, o herói mulato vence. E a revista nos põe na parede: ”E não é tudo assim?”.

A questão do escritor e do desenhista é jogada na cara do leitor, já obrigado a se acostumar com a velocidade de cinema, que a revista em mãos não é leitura-de-entretenimento (porém é coisa que também é inerente à toda arte), é sim um questionamento a ser respondido por obrigação de existir. Todos nós, ao vermos a bola-comum ser chutada em nossa direção, tornando-se bola-sol, conseguiremos defender o gol? Faremos nossos problemas ter apenas o tamanho que têm?

Considero a questão irrespondível. Porém, o término da HQ aponta para um caminho de esperança – o que salva PSICOPOMPO do mesmismo – pois é uma forma de Redenção.

Ainda que a Pergunta seja o tônus maior da revista.


Página 16.

Aqui, onde o texto de Octavio nos diz: “Vamos considerar…”, é um quadro particular do desenhista e não da ideia (ideias) do escritor. Hollanda foge, dentro de sua própria arte para uma representação que é, de longe, a maior amostra da intenção de verossimilhança, de arte realista. A favela representada tem o poder do Real. Ainda que o desenho tenha o cuidado de ter 1) um céu de nuvens irreais e 2) uma árvore seca que incomoda. Esses dois itens (1 e 2) são a lembrança de que você está, sim, em PSICOPOMPO… Ainda que a HQ dê seu recado dentro do mundo físico, sem desfazer do mundo ao qual ela pertence: o da obra de arte.

Hollanda, que já faz bom trabalho, aqui é devastador.



Página 18 e 19.

Na última página que comentaremos, um brinde de página dupla.

Aqui o nosso “eu-mesmo”, ou herói, ou o mestiço americano vê o mundo. Essa capacidade de comunicação da obra, falando mais do que o homem brasileiro apenas, é o que fez David Loyd se agradar da HQ… Pois uma das questões da HQ é ter uma voz com cor local, isto é, a voz do povo mestiço da América. Fosse uma obra menor, só se poderia entender a peça como “algo pra brasileiros”. Mas é mais. É a pergunta e a afirmação da problemática de um continente mestiço em essência e em carne.

Se o recado do roteirista está dado, o desenhista tomou o cuidado de colocar o sentimento do homem (ou menino) olhando o “grande mundo”, onde o mais importante está é no primeiro plano: nas pedras onde o mestiço-nós-americanos se equilibra têm mais volume e nos hieróglifos de inspiração egípcia.

A coisa (em primeiro plano) é sólida e forte em significados. Ainda que o desafio de um eu-no-mundo permaneça, a pista para esse imbróglio é dada (novamente, ainda que escondida) nesta página 18 (e 19), onde a solidez da solução do eu-comigo-mesmo (ou “nós-conosco-mesmos”) é a resposta que pede a primeira condição dita: o estar no mundo, no social, o desafio do outro, o convívio. O mundo, no texto de Aragão, não aceita ser negado. Tão pouco a construção do Ego.

É nessa equação necessária, porém difícil, que PSICOPOMPO dificilmente se tornará obra datada. Tem, sim, é fôlego e forma. Algo que é dura questão para nosso mercado editorial, mercado de quadrinhos e mercado de artes. O resumo do que aí está, está em PSICOPOMPO.




FINALE

A edição que se apresenta ao leitor é muito bem acabada e tem o tradicional formato “Graphic Novel“. A Editora CALIGARI acerta em todos os pontos. Onde se encontra uma revista à altura das publicações dos EUA e europeias.
Desde a escolha da gramatura da capa, do tipo de papel escolhido para o miolo, a diagramação da capa até o espaço dado ao introdutor e aos textos finais que são dos dois próprios artistas.

As orelhas da revista dão um pequeno currículo vitae de ambos. Em todas as folhas da publicação optou-se pela ausência da numeração das páginas, o que vemos como uma falha. Perguntamos a um dos autores sobre isso e a falta foi intencional, logo deve ser considerada. Mas achamos que os números seriam um pilar visual para a segurança do leitor no mar agitado da história. Fica como única ressalva na edição da CALIGARI. E com o dado disto ser intencional, ao leitor então é que cabe a decisão.



PSICOPOMPO é um marco no nosso mercado. Ainda que, conhecendo os autores, essa colocação será negada (por humildade apenas). A história é concisa e sabe onde ir. Os desenhos souberam representar o roteiro. A editora se mostra apta a dialogar com autores e obra e apresenta uma edição muito digna a um preço justo em nosso mercado. Se o público é da seara dos livros ou dos filmes ou HQs, pouco importa: a obra em questão se impõe como necessária.


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Abaixo o link para compra da revista. O site é o da tradicional, Livraria da Travessa:

https://www.travessa.com.br/psicopompo-1-ed-2020/artigo/535bb915-f550-4d9e-be7c-796285b74c67

 
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Publicado por em 29 de setembro de 2020 em Livro