O Menino
o menino que habita em mim
dá bom dia ao dia que nasce
o menino que habita em mim
desce da cama primeiro pra brincar
sem preocupação de cama
o menino que habita em mim
cheira as coisas e tem no peito estampado
um triangulo vermelho e um retângulo branco
o menino que habita em mim
dorme e acorda sob a égide da secularidade
das coisas que crescem da terra
e das águas que correm mansas
brinca sozinho com pedrinhas
olha as meninas de longe e as quer
– já guarda desejo de homem –
é justo com os honestos
e acolhe ofensas sem paixão alguma
colhe frutas só para si e corre
quando os outros parentes o chama
pra colher frutas para todos
o menino que habita em mim
corre por todo o dia
e à noite descansa
é o primeiro a ir para a cama
e sonha menino sonha
com a menina morena
que sabe lá da escola
o menino que habita em mim
o menino que habita em mim
observa a procissão romana
e o congado africano
nada entende
mas faz deferência a ambos
nasceu com oitenta anos
é velho como os morros e os ouros
e é espartano na vida
vive só com o que precisa
guerreia em honra à família
despreza os desordeiros
e se entristece da má poesia
o menino que habita em mim (consta)
parou um dia e ouviu um velho preto
que recitava casos antigos do estado
– e perdeu aula de matemática por isso –
mas saía pra comprar cigarros para o pai
sabia o preço e o troco – ia surpreso com o mundo
e voltava encantado com o que tinha
nunca precisou de aulas de matemática
o menino que habita em mim
parava diante de igrejas
nunca achou deus nenhum nelas
(nem procurava)
admirava-as pelo tempo que elas
diziam ter das pessoas que vieram antes
algumas eram de mesmo sangue
e ele seguia para casa
com todos os antepassados nos passos
o menino que habita em mim
nasceu lá nas famílias da Europa
mas já não tem essa memória
achava que as montanhas eram todo o mundo
e que todo mundo achava que as montanhas eram o mundo
ele mesmo não sabia que fundaria ainda
uma dinastia inteira
era filho de reis mas de temperamento simples
apiedava-se dos pobres
calava os defeitos dos outros
pedia bença à vó sem saber o que era isso
mas pedia todo dia
depois ia atrás do pai curioso
era um mundo inteiro que se abria
nem sabia que o pai continuava nele
o menino que habita em mim
regrava o dia qual relógio suíço
olhadas as horas por mineiro
mas desgovernava todas as obrigações
quando a menina morena lhe olhava um sorriso
©gustavo coutinho goulart